Nem só de notícias vive o jornalista - Os 20 anos da Facom relatados pela jornalista Heloísa Sampaio Morgana Gama de Lima Com os olhos atentos a um laptop, mas sem deixar de esboçar um sorriso nos lábios. Assim nos recebeu a jornalista Heloísa Gerbasi Sampaio no seu escritório de trabalho. Graduada em Jornalismo pela Universidade Federal da Bahia (1973), Helô, como geralmente é chamada pelos seus alunos, marcou a história da Facom não só enquanto professora de disciplinas como Tópicos em Planejamento Gráfico em Jornalismo, Estudo Orientado em Jornalismo e Legislação da Comunicação, mas como um raro exemplar dos apaixonados pelo fazer jornalístico. Além de ter lecionado na mesma faculdade onde se formou, Heloísa já presidiu o Sindicato dos Jornalistas da Bahia (Sinjorba) e trabalhou durante 30 anos no jornal A TARDE sob a função de editora gráfica e escritora da coluna Comes & Bebes, onde tornou-se famosa pelas suas crônicas e deixando revelar aos leitores a sua vocação em contar histórias. Vocação, cujas raízes remontam desde a sua infância, e que resultou num estilo próprio de se comunicar com os leitores. Desde quando você leciona na Facom? H.S. - Lecionar na Facom? Na Facom eu estou desde 70. Em 1970 eu entrei como estudante do curso de Jornalismo, lá na antiga Escola de Biblioteconomia e Comunicação, e em 1976 eu comecei a lecionar como professora colaboradora e fui efetivada em 1978. São 31 anos. De que maneira a Facom influenciou na sua trajetória de vida? H.S. - Você imagina uma pessoa do interior - eu sou de Ipicaraí - de uma família classe média. Minha mãe era uma mulher muito erudita - porque eram poucas as mulheres naquela época que liam - estudou em colégio de freira, filha de italianos, meus avós eram professores e minha mãe era uma mulher de mente muito aberta, mas morando numa cidadezinha, que foi meu pai que emancipou. Meu pai foi o primeiro prefeito daquela cidade e a gente foi criado assim, né... como mocinha de família. E aí, vim para uma faculdade de Salvador que tinha uma amendoeira no fundo e nesta amendoeira aconteceram coisas... (pausa). Era o curso de Biblioteconomia de manhã e de tarde Comunicação. Nós (os estudantes) estávamos vindo de um processo de reestruturação da faculdade. A faculdade funcionou algum tempo lá em Nazaré e aí, quando voltou, mudou a grade curricular, se adequou à reforma universitária. Então, a Facom foi uma revolução na minha cabeça, porque o pessoal aqui era liberado demais. Demais não - porque não tem limite pra liberdade de ser - mas pra essa menina chegada do interior e tal... E aí, virou a minha cabeça, a gente é também um produto do meio. A gente soltou, de certa maneira, aqueles preconceitos que a gente tinha lá no interior. E eu não me esqueço do dia em que eu usava uma sandália de pneu, bata e calça jeans, aquela sandália de pneu que deixava o pé imundo, não sei como eu usava aquilo, meu pé tava pé de carroceiro... E minha mãe começou a pensar: minha filha está perdida, meu Deus! Tanto que ela pediu pra uma colega minha de faculdade me dar uns conselhos. Não era possível, criada com tanto amor e carinho no seio da família estar com os pés naquela condição. Mas o importante da Facom foi uma formação sólida. Nós tínhamos professores que tinham um conceito de ética jornalística, eu acho que isso é uma coisa boa da Facom, que felizmente tem se mantido. Nós temos saído para as diversas áreas do Jornalismo, mas com esse consenso e passando esse senso para os nossos alunos, buscando transmitir essa coisa da seriedade do jornalismo, porque nós somos os olhos e os ouvidos da sociedade, então nós precisamos ter muita nitidez pra não nos deixar envolver com malandragem, com boa lábia, a gente tem que ter a sagacidade da área e a doçura no coração. Eu acho que é uma coisa difícil, mas a gente tem conseguido fazer isso. Buscar dentro dessa ave de rapina, buscar a notícia sem se contaminar, é lógico que toda regra tem exceção, mas acho que a Bahia tem um Jornalismo de bom nível. O que atraiu você à Facom? H. S. - Não a Facom, mas o Jornalismo. Eu fui atraída pelo jornalismo. Como tinha nessa época a parte de minha mãe - que ela era uma mulher muito culta - nós tínhamos muitos livros lá em casa e eu me habituei desde cedo à leitura. Eu nasci com gosto pela leitura. Quando chegava a época de Natal, ao invés de boneca eu pedia livro de história e os meus vizinhos, os meus amigos, nesta época, poucos gostavam de ler. Então, o que acontecia: eu lia os livros de história e eu era também a contadora de histórias. E, chegava à noite, depois do jantar lá no interior e a gente não tinha televisão. Então juntava a molecada lá na porta da minha casa e contava mentiras do dia que passou. E ao invés de contar mentiras, eu contava as histórias. E eu era gordinha e gesticulava enquanto contava as histórias. Eu até imagino como era eu , (risos) contado as histórias: João e o pé de feijão, Branca de Neve... eu tinha as coleções todas dos livros. Então, sempre tinha uma história pra contar. Voltando à questão do ensino de jornalismo na Faculdade, como você avalia o ensino na Facom? Gostaria que você detalhasse qualidades e defeitos. H. S. - Eu acho que a Facom investe mais nessa coisa cultural, nós temos matérias mais densas de cultura e filosofia, mas eu acho que ela falha muito na parte de tecnologia, essa coisa voltada para o trabalho, porque uma faculdade não pode se preocupar em formar só acadêmicos, acho que não tem espaço para isso. Acho que tem um mercado precisando de um casamento. Eu dou aula em outras faculdades e a gente tem um laboratório com um aluno por computador com o software que eu pedi. Então, a gente vê o que é o melhor para o estudante fazer o produto e nós trabalhamos cada um no seu equipamento. Eu acho que aqui poderia ter um aproveitamento melhor. Porque Jornalismo é saber fazer jornal também. Você tem que saber escrever e saber escrever não é ter somente a formação acadêmica, é saber pegar esse conhecimento e colocar na prática, na confecção de uma matéria que seja interessante para o leitor. Fora disso, vai escrever livro, outra história, outra estrutura. Agora, acho que para gente formular bem o nosso pensamento, ter discernimento, a gente tem que conhecer de ética, da escola dos filósofos, porque o mundo vai e volta, nada se perde. Todo conhecimento vai chegar um momento de ser aplicado. Você precisa saber botar seu jornal na rua. Você precisa saber como é que é feito pra você saber mandar. Aproveitando que estamos falando de jornal, gostaria que você me falasse um pouco da Helô além desse ofício. Que outras atividades você já fez? H. S. - Eu quebrei algumas estruturas. Planejamento gráfico aqui em Salvador, que chamava diagramação, era feito por boys que aprendiam. Era uma subfunção do jornalismo. Quando eu entrei bacharela, assumí a diagramação de A TARDE, com pouquíssimo tempo, passei à editoria gráfica e passei a buscar os alunos que se interessavam na faculdade. E, fui a levar os “bacharéis” – ah! os bacharéis – é o bacharel mesmo, mas foi com esse bacharel que a gente foi melhorando o nível do produto e aí só contratava os que tivessem uma formação melhor, porque o jornalista quando ele é oriundo de escola, seja ela qual for, ele está acostumado a ir ao teatro, ir a show, a ir a isso ou aquilo, é diferente. Um boy de jornal nem sempre tem acesso a um show no TCA. O meu estudante eu sei que tem. Então, eles tem outra visão de arte, de senso artístico e hoje eu tenho alunos que com certeza são superiores a mim, aprenderam comigo e estão desenvolvendo. Eu fico feliz quando vejo um profissional que passou por minhas mãos, foi formado por mim e hoje a criatura supera o criador, é isso que me dá prazer, quando chegam e discutem comigo, quando a gente tá fazendo algum produto, tem argumentos, tem consistência, ele foi investindo nessa coisa que se chama jornal. A briga hoje no mercado é séria, a notícia é e será sempre o grande produto, agora temos várias formas de apresentar essa notícia, quem a apresentar melhor vai subir na parede, porque a notícia tem em todos os jornais. Todas as empresas tem num mesmo momento. Então, você vai escolher um jornal ao invés de outro, porque você vai se identificar mais com a minha política e a minha gráfica. Acho que isso influencia nessa guerra de mercado e, não vamos esquecer: o que dá o prestígio a uma empresa jornalística é a sua penetração na comunidade, é a sua tiragem, quanto mais jornal vende, sinal de que mais pessoas acreditam naquela empresa. A tiragem requer a confiança da população naquele veículo. Então, nós devemos cuidar da notícia em todos os seus aspectos, inclusive, o gráfico, principalmente o verídico, o ético, mas o gráfico também porque com internet hoje, minha querida, o fato é que cada vez mais vai ser difícil o furo, o furo vai ser objeto de pesquisa, você vai ter que acompanhar pra dar um furo. Você vai atrair o leitor pelo trabalho que você vai garimpar. Porque o fato, as rádios levam na mesma hora, a televisão leva na mesma hora, porque o jornal vai dar no outro dia uma notícia que foi badalada desde 7 horas da manhã de hoje? Então o jornal vai ter que correr muito para se manter vivo e influente. Em que aspecto a Facom pode ser considerada um exemplo para outras instituições? H. S. - Eu acho que a Facom tem um papel fundamental quando permite o amplo debate dentro de suas portas. Lá nós não somos policiados, lá nós discutimos todos os problemas, se quisermos, sem partidarismo se nós não quisermos. Nós não vamos nos sujeitar, nem nos subordinar à Facom, nós podemos ter um pensamento livre e analisar com clareza todas as situações. Quem não quer é que só pensa com a viseira, que quer só contar com a ótica que se atrela a partido, não tenho nada contra o partidário. Acho que nós jornalistas ser comprometidos em não termos a matéria ligada a interesses político-partidários, acho que a Facom faz isso. Deixa que a gente tenha amplitude de pensamento. Quem quer se limitar, se limita. Voltando aos 20 anos de Facom... desde que ela se separou do Instituto de Biblioteconomia você acha que mudou alguma coisa? H. S. - Temos mudado e mudamos para melhor. Quando nós funcionávamos lá, era máquina (de escrever), a “pretinha”, a gente trabalhava com máquina de datilografar e viemos para a antiga Maison de France. Quando a Casa de França saiu, a gente invadiu o prédio e o reitor acabou permitindo e possibilitando a nossa permanência, mas aí a gente passou a ter outras salas e espaço pra laboratório. A escola foi crescendo, o jornalismo também foi ganhando importância no mundo. Hoje nós temos um prédio que tem uma certa estrutura, apesar de ser um prédio limitante. Eu, por exemplo, tive de me afastar, porque fui fazer uma cirurgia no fêmur e não tinha como subir aquelas escadas, porque não tem elevador, aí poderia até subir, mas ficar mais de 2 horas sentada. Eu acho que limita demais. (Atualmente a professora anda com o auxílio de uma muleta em decorrência de seqüelas do acidente). Mas acho que a Facom de hoje é muito melhor do que a de antes. Hoje a gente tem outra condição de trabalho e equipamento. A Facom está se equipando, acho que é um momento bom. Não é bom para o Jornalismo em geral, porque as empresas estão passando transformações profundas, a gente está passando para uma nova era de um jornalismo mais empreendedor, onde você vai ser seu patrão, você vai produzir e vai vender o seu produto. Já basta aquela coisa de ser empregado da empresa. Isso aí acabou. A gente não tem mais emprego, tem trabalho. Você vai ter que trabalhar muito pra se colocar no mercado. Agora, eu acho que os bons sempre tem oportunidade. Sempre haverá mercado para os bons. Você escreveu na coluna Comes & Bebes do jornal A TARDE, continua lá? H. S. - Não, porque eu saí do jornal, me aposentei. Foram 33 anos de jornalismo no A TARDE. Há um ponto de alimentação na Facom, mais conhecido pelos alunos e professores como “Cantina da Tia Del”. Você, como grande degustadora da culinária baiana, já provou os pratos da “Tia Del”? H. S. - Ah... Como presidente do Sindicato dos Jornalistas fiz vários seminários lá na Facom. Era tia Del que resolvia o caso da gente. Eu gosto da comida dela. Acho que é uma comida caseira, gostosa. Acho que é mais um atrativo da Facom. Quando a gente fazia os seminários, era preferencialmente na Facom porque é, pra nós do sindicato, ´´o ambiente``. A gente queria pegar a Facom porque era nossa casa e tia Del era quem salvava a gente, tinha almoços, coquetéis, eu acho muito bom. É um pouco de congregação, confraternização e amizade, porque você tá ali. Acho que é um ponto de encontro legal, a Facom também tem esse privilégio. Falando de comida, de onde surgiu essa motivação pra gostar de escrever sobre esse assunto? H. S. - Na verdade, eu era da editora gráfica do jornal e nós temos o caderno Lazer & Informação e nesse caderno Bel Machado fazia duas colunas: uma com os artistas e uma gastronômica que era a coluna Comes & Bebes. Mas Bel gostava mesmo de fazer com os artistas, promover os artistas baianos conhecidos. Era uma pessoa fantástica e essa era a praia dele. Só que caderno tem horário pra fechar. Nós somos uma indústria. Uma indústria da informação, mas uma indústria. Tem que ter máquina pra imprimir. E todos os produtos têm que estar lá seis horas na minha mão, senão a pessoa vai comprar o jornal concorrente. E aí chegava o horário de fechar o caderno, Bel numa “consumição”. ´´Cadê a matéria? Cadê a matéria?`` Até que chegou um dia que ultrapassou demais o horário, eu republiquei uma crônica dele e os leitores não gostaram. Claro! As pessoas querem ler coisas novas, ler o que já leu, ´´ pão dormido``, não tem graça. E, da segunda vez que ele atrasou, eu sentei – eu sou jornalista – e fiz uma crônica e botei no lugar. Ele que mandou, estourou o horário. Eu não tinha o que botar no lugar. Eu cheguei, fiz e botei. Ele adorou! E ficou o seguinte: uma semana eu fazia, a outra semana ele fazia, porque aí aliviava ele com o negócio dos artistas e depois ele definitivamente deixou de fazer e eu assumi a coluna desde 1989. Passei a fazer ininterruptamente. Só deixei de fazer uma semana que foi quando minha mãe morreu. Todas as outras eu fiz. O que deu motivação para você ensinar? Você tem a pretensão de voltar para a Facom? H. S. - Eu ensino desde 76 porque eu era editora gráfica de A TARDE e o professor de planejamento gráfico da Facom estava querendo se dedicar a outras matérias. Fui colaboradora em 76, 77 e 78 e depois fui efetivada e passei a ser parte do quadro. Mas eu comecei realmente planejamento gráfico porque era e é o que eu gosto de fazer. Diagramar a página é sempre renovador, fazer uma página diferente me motiva. Eu, quando produzia um caderno lá no A TARDE, ia até a boca da impressão pra esperar sair os primeiros exemplares, pra ver cor, pra ver tudo, como se fosse um filho. É o setor de jornalismo que eu mais gosto. Além disso, o que eu mais gostava era a coluna, porque é uma coisa que não seguia o rótulo do jornalismo, eu criei um estilo próprio em que usava uma linguagem criativa, coloquial, botava o leitor de junto – “sente de junto, meu nego!” – uma coisa mais intimista. Então, eu acho que tenho muito a agradecer na vida porque eu sempre faço as coisas que eu gosto. Acho que Deus me premiou e me deu algumas dificuldades, como esse acidente que eu tive logo muito jovem, que até hoje eu padeço dessa perna, mas isso não impediu que eu vivesse os bons momentos na minha vida. Eu, de uma certa maneira, me casei com o jornalismo, porque me dediquei completamente a ele e os homens não aceitam que uma mulher fique na rua até meia-noite – e eu trabalhava até 11 horas. Eu tinha 20 e poucos anos e ´´a pessoa`` achava que os homens podem e as mulheres, não. Eu optei pelo jornalismo, quando ele falou que não aceitava que eu chegasse meia-noite, tinha que escolher e eu escolhi o jornalismo. Acho que foi realmente um problema de escolha, poderia ter casado, ter filhos, ser mamãe – até dizem que eu sou extremamente maternal e tem os filhos dos meus irmãos, mas se eu voltasse e nascesse de novo, seria jornalista novamente. E tem pretensão de voltar à Facom? H. S. - Não, porque eu já ensinei 30 anos lá na Facom e com essa limitação – eu tenho uma prótese no fêmur – pra ficar em pé é complicado. Eu acho que eu já cumpri minha missão na Facom. Eu amo a Facom, mas acho que já deixei meu tesourinho lá. Agora deixo para outros com mais sapiência, com mais sabedoria para conseguir formar melhor os novos jornalistas.
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